Como é difícil manter o significado de uma obra quando ela é traduzida para outras línguas. Marcela Batista conta de forma poética a passagem do português para o espanhol na tradução de SOZÉ.
Gosto de pensar uma obra de arte como um corpo, porque me atrai a ideia de ser tocada por essa outra materialidade, que mexe com o nosso corpo também, acelera os batimentos do coração, nos faz rir, chorar, se indignar, se emocionar. Gosto de pensar o livro como uma obra, e esta obra como um corpo, porque uma vez no mundo ele tem vida própria e irrompe no espaço com sua energia, com sua própria maneira de ultrapassar a linguagem e ser algo mais, uma presença, um corpo que interage com o nosso quando o lemos e tocamos nele.
Um livro é feito de palavras, papel e identidade; assim como cada casa possui sua organização particular, número de cômodos, cor das paredes, portas e janelas, o livro tem seu próprio caráter, por isso também sua receptividade muda conforme quem mora ali, de quem é ou não convidado a entrar. No meu caso, fui convidada a entrar na casa SOZÉ, obra da poeta brasileira Anelise Freitas, em agosto de 2018: em razão do lançamento do livro, a autora abriu as portas para mim e outras três poetas para ler muito de perto, viver, dançar e extrapolar as paredes do livro: deveríamos pensar em uma performance para o lançamento da obra.
Uma performance, no meu entender, seria conceber outra vida para o livro, fazê-lo habitar um corpo diferente, mantendo sua essência e, ao mesmo tempo, evocando outras identidades, outras vozes habitando esta casa. A maneira que encontrei de fazer aqueles versos habitarem outro corpo foi então preparar uma versão para o espanhol do poema intitulado “Poema do angu” (“Poema del angú”), que me fez pela primeira vez transitar por novos corredores de sons e imagens. Depois do lançamento do livro, continuei traduzindo outros poemas, seguindo uma lógica afetiva: primeiro eles me tocavam, enquanto lia no português, logo ensaiavam outras vozes dentro da minha boca, em espanhol. Assim a nova tapeçaria linguística se tramava, aos poucos, ia se espalhando pela casa, entre letras e papéis, anotações e leituras. Eu corria e anotava no papel.
Existem várias formas de se ler uma obra, ainda mais quando é um livro de poemas. Primeiro como leitora, e posteriormente como tradutora da obra, foi pensá-la como uma casa, que ao longo do trabalho de tradução fui desenvolvendo e aprimorando. Elaborei um esquema para submergir no trabalho que me esperava, entendendo o livro como uma construção em que há duas faces, uma interna e outra externa, ambas tangenciadas por uma terceira face, a linguagem.
A capa do livro, que leva o título da obra, possui um nome masculino acoplado à forma de tratamento formal, que em português se aplica às pessoas mais velhas. Neste caso, “Sô” é a abreviatura de “senhor” e “Zé” é a forma apocopada de “José”, compondo o título SOZÉ. No interior de Minas Gerais, as casas e suas mulheres costumam ser conhecidas pelo nome do homem mais velho, então é comum ouvir “casa do João”, “filha do José”, “neta do Antônio”. Ao contrário, no âmago da casa, que vemos somente se entramos, estão as mulheres que a constituem, que a mantem viva, o trabalho das mulheres, suas subjetividades e, principalmente, a linguagem das mulheres, das muitas mulheres que habitam seu interior vivo.
Na parte exterior da casa, estão os homens na superfície, o que se mostra e o que se vê; na parte interior da casa estão as mulheres e seu fazer diário. O maior desafio foi traduzir as vozes, sentidos e jogos de palavras de tantas mulheres, cada qual com sua sintaxe, vocabulário, seu próprio sotaque, sua própria mensagem. No meu entendimento, não existe a separação rígida entre o interior e o exterior, ambos se tocam, se inter-relacionam e se constituem mutuamente, a casa é sempre atravessada pela rua, e a rua pela casa. Como tradutora, habitei por cerca de um ano este limbo, me agarrando à linguagem que oscilava entre lá e cá.
Gosto de pensar neste limbo como uma varanda, este dom arquitetônico que nos permite estar a um só tempo dentro e fora da casa, suficientemente segura, suficientemente arriscada. Na varanda costumamos jogar com os limites, e nesse jogo então constituímos um terceiro lugar, no qual alcançamos conectar estas duas esferas por meio da linguagem, que também é uma extensão da vida de dentro e da vida de fora. Desta exposição, desde o avarandado da língua, advêm a copresença dos espaços, a coexistência dos corpos, das línguas que perfazem a experiência poética e tradutória.
Na obra há muitos jogos de palavras, termos específicos do interior da casa, neologismos, regionalismos, e um trabalho com a linguagem que desafia o leitor e torna o processo de tradução também um jogo, com escolhas tradutórias que perpassam o tradutor, o caso a tradutora, como leitora da obra. Nesse sentido, houve muitos casos nos quais tive que optar entre um ou outro caminho de tradução, na tentativa de manter o máximo possível da estética do poema.
No poema “Por enquanto não há previsão de mudanças” (“Por ahora no hay pronóstico de cambios”) há um jogo de sentido entre o feminino e o masculino, associado aos substantivos menstruação, endometriose e cólica, femininos em língua portuguesa, em oposição aos substantivos ovário, útero, feto, todos masculinos. Durante a tradução me topei com este aspecto: transpondo os substantivos literalmente ao castelhano teríamos la menstruación, la endometriosis, el cólico. Entretanto, el cólico rompe com o fluxo de sentido do poema, no qual a oposição substantivo feminino e masculino era fundamental.
A carga semântica que nos traz a matéria substantiva masculina ser associada à própria carne reprodutiva, biológica, da mulher, como o feto, ovários e útero, em oposição à matéria que obedece outro ciclo, o que se oculta e pertence ao âmbito mais íntimo da mulher: a menstruação, as dores, a angústia, se perderiam caso a tradução seguisse um fluxo literal. O caminho foi traduzir a dor íntima, substantiva feminina, mantendo a construção estética de oposição, escolhendo a palavra punzada, que está no interior desta casa que só conhecemos se nos deixamos levar para dentro.
Em português as vogais abertas e fechadas são pares mínimos, quer dizer, ao optar por um fonema aberto ou fechado temos dois significados diferentes para a palavra. Um exemplo bem comum é o que ocorre com os substantivos avô e avó: o primeiro, se lê com a vogal fechada, significa abuelo; o segundo, se lê com a vogal aberta, significa abuela. Um caso semelhante me ocorreu com o poema “Texto da aliteração velar-oclusiva III” (“Texto de la aliteración oclusiva velar III”). No poema em português há um duplo sentido na palavra gosto que me fez, novamente, escolher um caminho de tradução, no qual conseguisse chegar ao leitor um gosto desse jogo de linguagem.
Se lemos o verso com a vogal fechada, “e amar é muito mais que corpo, é presença e gôsto”, gosto é um substantivo que significa paladar, o sabor que tem as coisas; se lemos o verso com a vogal aberta, “e amar é muito mais que corpo, é presença e gósto”, temos então o presente do indicativo do verbo gostar, que significa ter apreço por algo ou alguém. No poema, este aspecto poético particular do português soa como uma sinestesia do corpo que ama, deseja e ao mesmo tempo saboreia o outro, uma mesa posta, um jantar ora ser compartilhado. Na tradução, encontrou uma solução também particular. Mantive, na primeira estrofe, o sentido do gosto, do sabor que está no paladar, e também de estar à vontade, como quando estamos em casa: “y amar es mucho más que cuerpo, es presencia y gusto”; o sentido de apreço e afeto pelo outro, foi construído nas estrofes seguintes: “me gusta vos”.
Traduzir SOZÉ foi uma experiência sensorial poderosa, passou por muitas casas, do interior de Minas ao Rio de Janeiro, experimentou também uma temporada na Argentina, e muitas e diferentes varandas foram construídas nesse meio tempo. O corpo expansivo desta obra, transitório e perene, tão múltiplo e particular, interage com nossos corpos a tal ponto, que nos tornarmos casa para sua existência. Uma babel de vozes de mulheres dialoga e transborda para além das quatro paredes do livro, se expande, rompe portas e janelas: se lança todo avarandado.
SOZÉ
Anelise Freitas
Brasil: Edições Macondo, 2018
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Sobra as autoras
Marcela Batista é escritora, tradutora e revisora, dividindo seus dias entre o português e o espanhol. Editora do selo independente Capiranhas do Parahybuna, teve sua primeira publicação Caderninho Vermelho (2018) realizada pelo selo, cuja edição está atualmente esgotada. Seu segundo livro de poemas será bilíngue e está em fase de edição, a ser publicado em 2021, na Argentina, pela editora Hemisferio Derecho. Atualmente se dedica a pensar outras linguagens poéticas, por meio da colagem analógica, mantém um blog com traduções de poetas latino-americanas, enquanto revisa e prepara materiais didáticos, na cidade que está aprendendo a amar, o Rio de Janeiro.
Anelise Freitas é escritora, revisora, tradutora, professora e editora no coletivo editorial Capiranhas do Parahybuna. Além da graduação em comunicação e letras, é mestra e doutoranda em Estudos Literários. Seus poemas já integraram revistas do Brasil, Portugal, Inglaterra e Argentina; e exposições em Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Publicou cinco livros de poemas, sendo os mais recentes SOZÉ (Macondo, 2018) e Mamafesto – Parte I (Capiranhas do Parahybuna, 2018). Participou de duas antologias na Argentina, Tropa voluntaria (Proyecto Lux/Argentina, 2016) e Corderos en la espuma (Proyecto Lux/Argentina, 2018).
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